Vida mal traçada (Dantas de Sousa) - conto

Se não se consegue saída para um grave problema, com certeza existe alguém para ensinar como se sair dele. Com esse pensamento martelando dentro de si, ele se dirigia a pé, para a casa de número 16, da Rua das Flores, nas imediações do bairro Romeirão, em Juazeiro do Norte. Não avisara nem mesmo à esposa. Precisava descosturar da sua vida um remendo mal feito. Caminhava nervoso, de chapéu e óculos escuros, tentando se disfarçar dos curiosos. Após ele se atrapalhar em duas ruas do bairro, bateu à porta do endereço escrito no guardanapo de papel. E logo aberta a porta por uma mocinha de rosto magro e olhos fundos, ele lhe disse meio sem jeito: “Bom dia. Eu queria uma consulta”.

- Entre pra dentro. - ordenou-lhe a mocinha.

Na sala da frente, ele se sentou no sofá verde, desgastado pelo tempo. Tirou o chapéu, não os óculos. À sua frente, uma cliente loira, de óculos escuros, roía o esmalte vermelho-escuro da unha. Ele tratou de folhear a revista de variedades. Mas seu pensamento sobrevoava sobre páginas, angustiado pela notícia da gravidez da amante. Lembrava-se da chegada da filha da amante a lhe entregar o bilhete, lá no armarinho do Mercado Central. A amante lhe alertava que, há três meses, não menstruava.

Remoeu-lhe um pensamento: besteira grande fizera, ao ter se enrolado com a desajuizada. E parecia pintar outra chantagem da amante. Há ano e meio Madalena o desafiou. Havia lhe pedido mil reais para reformar a casa. Ainda o ameaçou de fazer inferno para sua esposa. Sob pressão, ele abriu o bolso. Só que dessa vez procurou se consultar com a cartomante, para saber dela que remédio ele curaria a infame ferida.

- Manda entrar o da vez, Iara.

Ele se levantou do sofá ao ouvir a voz fanhosa de dentro do quarto à sua direita. Mesmo revelando impaciência, ele observou a mocinha penetrar a mulher loira no quarto. Voltou, então, a se sentar no sofá, para se distrair na revista. Mas, após trancar a porta, a mocinha veio se sentar na almofada do chão diante dele e anunciou: “Pra mãe botar carta, é vinte reais. O senhor paga à mãe”. A mocinha se levantou e se sumiu por entre a cortina vermelha.

Na sala, o silêncio voltou. Ele ainda folheou apressado algumas páginas da revista, porém jogou-a sobre a mesinha ao lado do sofá. De cabeça baixa, com os olhos a vagar sobre o tapete empoeirado, procurava como a mulher iria lhe mostrar a desamarração do nó. Mas a mocinha o fez sair da divagação: “Senhor, tome o café. Passei agora”.

Diante dele, após lhe entregar a xícara, a mocinha abriu o caderno e retirou a esferográfica. Ele não admitiu seu nome escrito no caderno. Bebeu metade da xícara, entregando-a para a moça. Acendeu o cigarro. Ao vê-lo de cigarro aceso, a mocinha pôs o cinzeiro junto dele. E sentou-se na almofada, para se dirigir a ele: “Já vi aqui gente como o senhor. O senhor trabalha com gado, né?”.

- Você acha?

A mocinha sorriu para ele encabulada. Vendo, porém, que ele não queria conversa, pediu-lhe licença, a fim de olhar a panela no fogão. Enquanto a moça se demorava dentro da casa, o ponteiro fino do relógio vermelho, de mostrador branco, corria na estante, mais que os outros dois. Na prateleira abaixo, a estatueta da cigana e a do preto-velho estavam iluminadas pela vela branca sete dias. Deixou-se ser levado pela chama da vela a tempo passado.

A figura de Madalena, diante dele, a lhe olhar com aqueles olhos castanhos. Quando raivosa, os olhos dela  aumentavam e as pupilas não se mexiam. Diferente daqueles olhos submissos, na levantada de rosto, quando ele almoçava na barraca dela, durante a romaria de setembro. Lembrou-se do seu inusitado primeiro gracejo diante dela, a lhe servir o almoço: “Seus olhos combinam com seu tempero”.

Enquanto durou a festa da padroeira, Nossa Senhora das Dores, ele deixava a barraca de bijuterias entregue ao filho de doze anos e, culpando a fome, corria para a barraca de Madalena. Desfrutou-lhe o tempero da comida e os olhos dela. Deu no que deu: alimentou-se de abraços e beijos. A paixão, dentro dele, ferveu um grau tão alto que ele terminou batendo à porta da casa dela, por trás do Santuário de São Francisco das Chagas. Dali em diante, durante as idas noturnas à casa da amante, ele implantou, no cérebro da esposa, desculpas.

- Manda entrar o da vez, Iara.

Outra vez ele se assustou com a voz fanhosa da cartomante dentro do quarto. De tão absorvido naquela aura lúgubre do local, não chegou a perceber a saída da mulher loira. Atordoado, levantou-se do sofá para obedecer à mocinha, convidando-o a penetrar no quarto da cartomante. E ele, encabulado, entrou no repugnante quarto, tomado por fumaça de cheiro esquisito.

Absorveu-se ele de magia: nos quatro cantos da sala, velas de cores diversas, estátuas, garrafas e copos com líquido. Na parede diante dele, o preto-velho, de chapéu e barba branca, fumando cachimbo, encarava-o sério. Na mesinha ao centro do quarto, a morena cartomante, de lenço branco amarrado à cabeça, achava-se sentada à espera dele sentar-se diante dela.

Antes de se sentar diante da cartomante, fixou o olhar na toalha branca. Sobre ela, as cartas do baralho, a carteira de cigarros e o vidro de alfazema. Ele se arrepiou com a voz fanhosa da mulher, mandando-lhe sentar-se na cadeira diante da mesa. Sentou-se incerto.

A cinza do cigarro da cartomante misturou-se nas cartas do baralho. Ele procurou respirar fundo, tentando se aliviar da fumaça do cigarro e do fedorento incenso. Acompanhou com os olhos a mulher traçando, em silêncio, o baralho. Ela embaralhava as cartas entre os dedos finos e, em cada um deles, havia anel de preço baixo. Relembrou-se de que já vira gente do tipo da cartomante: ciganas rondando pelo Mercado Central. Andavam de saias longas, lenços amarrados à cabeça, e de anéis, pulseiras e colares. Os comerciantes não lhes desgrudavam os olhos, muito mais para não serem roubados do que pela esquisitice dos trajes delas.

Uma pausa no traçado fez a cartomante, a fim de aspergir sobre as cartas a alfazema. A essência se espalhou pelo quarto, misturando-se com o fedor da cachaça. Ela voltou a traçar as cartas. Parou de novo para acender o cigarro. Segundo ela lhe revelou, aquilo era ritual para abrir canal com os espíritos. E ordenou-lhe de voz forte: “Corte em cruz, meu amigo”.

Diante da lerdeza dele, a cartomante traçou sobre as cartas o sinal da cruz e ordenou-lhe com voz rígida: “Corte as cartas, fazendo uma cruz sobre elas. Vamos logo”. Mas ele, indeciso, suava. Meio sem jeito, cruzou com a mão direita, trêmula, sobre as cartas. E ouviu a voz pausada da cartomante: “Eu vejo aqui prejuízo”.

- Prejuízo? Com quê?

A mulher, não se importando com a incerteza do cliente, pediu-lhe mais atenção, a fim de continuar ouvindo o que lhe comunicavam os espíritos. E prosseguiu: “Não vejo coisa boa. Nas cartas, vejo grande perda... Por meio de gado”.

- Peraí, senhora. Agora me deixou sem saber...

- Escute as cartas, bom amigo. Aqui, não se pode duvidar.

Nem pouco ele entendia do que a mulher lhe havia dito: prejuízo, perda com gado... Não se aguentou na cadeira: que ela lhe fosse mais clara. Enfezou ele a cartomante: “Desembuche logo“.

- Se quer saber... Está vindo, pra você, dias de vaca magra.

- Vaca magra? Basta o que estou vivendo. Arrote a verdade.

Antes da cartomante lhe pedir calma, ele esmurrou, com mão fechada, a mesa. A alfazema se espalhou pela toalha. Engolindo raiva, a cartomante, lhe pediu paciência. Mas ele, nervoso, gesticulando com as mãos, esbravejou: “Pare de me enrolar, dona”.

Levantou-se depressa a fim de sair. Procurou dinheiro pelos dois bolsos da frente da calça. No entanto, a cartomante, usando-se de palavras persuasivas do ofício, forçou-o a sentar-se. Exigia-lhe dele paciência, para que entendesse as mensagens do alto. E, mais uma vez ele se deixou levar pelo traçado do baralho.

A cartomante lhe ordenou o corte das cartas em cruz e com muita fé. Ele cortou-as. A sibila ficou a meditar por instantes. Por fim, apresentou-lhe uma carta à altura do rosto dele: “Meu bom amigo, essa carta quando aparece é desgraça. E é com bicho de quatro pernas”.

- Mentirosa. Que negócio de quatro pés. É com moléstia de saia.

Ele mesmo se revelou: veio saber se a amante Madalena, a que vendia comida na barraca próxima à Matriz de Nossa Senhora das Dores, estava mesmo grávida. Ele era casado há anos com uma mulher que vive de casa para a igreja e que não gostava das coisas de satanás. Bem sabia que o safado do Barbosa, lá do Mercado Central, vizinho do seu armarinho, tinha atolando macumba na cabeça dele.

- Peraí. Tome cuidado no que diz. Não mexa com o oculto.

De pé para sair, mandou a cartomante para a merda e jogou sobre a mesa duas cédulas de dez reais. A raiva era tamanha que se assustou, ao deparar-se com o trinco da porta do quarto em sua mão. Diante dele, a mocinha procurava tranquilizá-lo, pedindo-lhe calma. Não lhe deu ouvidos, mandando-a para a merda. Abriu com força a porta da frente. Mas antes de fechá-la, ouviu a fanhosa cartomante gritar para a mocinha: “Iara, esse homem mexe com quê?”.

- Com gado, mãe?

Quase que ele foi acertado por um jarro, voando pela sala de visitas. Quase que ele derrubou a porta da rua. Descontrolado, desceu pela Rua das Flores sem óculos, sem chapéu e com a língua presa dentro da boca. Já dentro da casa de Madalena soltou a língua diante dela: “Fale logo, sua merda, está ou não está? Se estiver, vai ter de tirar”. E, após gritaria dos dois, Madalena desafiou na porta da frente: “Pois obrigue eu fazer aborto, seu merda”.

Três dias depois, ele, após refletir bastante, não só em casa como no armarinho, dirigiu-se à casa de Madalena, decidido a acabar com a chantagem. Entretanto, encontrou-a furiosa, principalmente por ele ter ido, segundo contaram a ela, chafurdar com o nome dela na casa da vagabunda cartomante, sua inimiga. E afirmou com dedo indicador quase dentro do nariz dele, que não faria o aborto.

Assim, diante do grande desaforo de Madalena, ele, descontrolado, sem se importar com a menina entre gritos e choro, atirou três vezes na amante. E só se despertou do crime que cometera ao ouvir, sentado na bancada de cimento da delegacia, a ordem do delegado, dentro da sala, para o subordinado: “Manda entrar o da vez”

JN, Dantas de Sousa, Eurides.

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