No
dia em que os homens souberem mais que Deus, o mundo se acaba. Isso eu ouvi,
meu amigo Estevão, diversas vezes Seu Procópio dizer. Era costume de Seu
Procópio sentar-se na calçada de sua casa, na Rua Santa Clara, das seis às nove
da noite. Ele também se referia ao progresso da Ciência como um grave pecado do
homem, que queria ser igual a Deus. Não adiantava ousar contrariá-lo. Mesmo
assim, eu admirava a habilidade profissional dele. Fabricava alpercatas e
chinelas para vender em feiras do Cariri, às segundas-feiras. A arte aprendera
do pai. Com ela, conseguiu criar cinco filhos e enterrar três pequenos.
De
quando em quando, no meio da prosa, mostrava-se arrependido por ter sido
alcoólatra. Segundo ele, deixou o vício do álcool após uma promessa a Nossa
Senhora Auxiliadora. Mas, no fim da vida, Seu Procópio morreu de câncer de
pulmão, devido ao vício do cigarro, desde seus quinze anos.
Vi-o morrendo, só couro e osso, olhos verdes arregalados para o telhado. Sua mulher, dona Chiquinha, chorava baixinho, sentada na cama ao lado dele e, de quando em quando, passava nele o algodão molhado de água nos lábios. Seu Procópio não engolia mais nada. O câncer, depois de dois meses da sua última Renovação do Sagrado Coração de Jesus, derrubara-o com vontade na cama. Naquele primeiro dia de carnaval, mês de fevereiro, dona Chiquinha lhe fechou os olhos.
Quando Seu Procópio acabou de morrer, eu saí do quarto atordoado. Resolvi, então, rezar pela sua alma, diante do seu oratório, na sala da frente da sua casa. Só que, ao levantar meus olhos para o quadro do Coração de Jesus, recordei-me da sua última Renovação. Todos os anos, no dia treze de dezembro, dia de Santa Luzia, a família de Seu Procópio se reunia para comemorar, com muitos convidados, mais um ano de devoção ao Sagrado Coração de Jesus. O quadro de Jesus foi entronizado em sua casa desde o tempo em que seus pais, já falecidos, compraram a casa da Rua Santa Clara para morarem.
Como
eu gostava de participar da Renovação do Coração de Jesus do Seu Procópio e
família. Após a reza e a cantoria dos tradicionais hinos católicos, entoados
mais por mulheres, eu e Seu Procópio, na sua sala de jantar, fartávamos do café
do santo e da fartura de bolo, sequilhos, refrigerante de caju. Ali, lembrei-me
das palavras de alegria de Seu Procópio quando nós dois, minutos atrás,
sentados na calçada, ao final dessa última Renovação, ele me falou com
animação: "Estou muito satisfeito, meu doutor. Tenho que dar graças a
Deus. Todo mundo rezou, cantou, comeu, bebeu a granel. E ainda tem de sobra.
Pois fique sabendo, meu doutor: hoje, no raiar do dia, só tinha dentro de casa
água no pote".
Como
eu ainda me achava a comer e a beber em silêncio, Seu Procópio, após beber a
xícara cheia de café, de uma só vez, me explicou que, ao se ver sem nada dentro
de casa para fazer a Renovação do seu santo, e não querendo passar vexame
diante da família e dos seus convidados de todos os anos, procurou se valer do
Coração de Jesus, na sala de visitas.
Olhando
bem nos olhos de Jesus, pediu-lhe com firmeza, diferente de pedir a um homem
rico da Terra. Então falou para Jesus que não tinha como fazer a sua Renovação
naquele dia, e que Jesus lhe desse um jeito. Envolvido em tristeza, após beber
seu café e acender seu cigarro, foi trabalhar na oficina, que era um quarto no
quintal de sua casa.
Perto
das nove horas da manhã, bateram-lhe à porta da frente de sua residência. Seu
filho mais velho foi atender. Segundo o filho, era um freguês do Piancó, no
Piauí, que comprara ao pai umas alpercatas tempo atrás e, vindo a Juazeiro do
Norte fazer compras, se lembrou de Seu Procópio.
-
Pois num foi, meu doutor, disse-me animado Seu Procópio, que o freguês se
embelezou com minhas alpercatas. Era um resto de feira que eu pensava ser
sem futuro. E eu já tinha dado elas por perdida. Aí ele arrastou o que eu
tinha: pouco pra cem, E me pagou na hora. Ainda, ele me adiantou o dinheiro de
cem pra eu fazer mais. E era pra ele pegar na próxima viagem.
Ao
término da sua história, Seu Procópio deu uma pausa para beber mais um café e
se lembrou do cigarro, porém já não podia mais fumar. Voltando a se animar,
concluiu com estas palavras que, para mim, foi um conselho para eu me lembrar dele
para sempre: "O Coração de Jesus, meu doutor, tem muito poder. O senhor
está de prova: viu todo mundo que veio pra nossa Renovação do Coração de Jesus
encher o bucho e até levaram comida. Por isso eu digo a meu doutor e nunca tive
vergonha disso: um devoto do Coração de Jesus, que se pega com Ele com fé, Ele não falta em qualquer ocasião. E isso é só uma das
promessas que meu Jesus deixou pra este mundo de pecador. Eu fiz muita coisa de
errado, fui alcoólatra e fumante, e hoje estou sofrendo conformado com os meus
pecados. Sei que ainda vou passar no Purgatório, mas já aliviei meus erros um
pouco".
Aquele
instante, Estevão, parado diante do oratório de Seu Procópio, e a contemplar o
quadro antigo de seu Coração de Jesus, passei os olhos naquela casinha
meia-água, de parede de tijolo cru e pintada de verde-claro. Ouvia-se um choro
tranquilo e sem alarde por parte dos familiares de Seu Procópio. Quanta
educação de fé católica, cristã, naquela humilde e pobre família. Saí de lá
ouvindo dona Chiquinha e sua irmã solteira Rosa, que morava há anos com a
família, e mulheres da vizinhança, todas a rezarem o Rosário,
encomendando ao Reino Celeste a alma de Seu Procópio.
JN. Dantas de Sousa, Eurides.