Dona Valdemira Bitu de Noronha, uma senhora destacada na sociedade do Cariri, apreciava boa conversa entre amigos e amigas. Gostava da literatura e da música, além de outras artes. Era conhecida no meio popular como a viúva do coronel do exército brasileiro Joaquim Ferreira de Noronha, ou coronel Noronha. Quando vivo o marido, ela chegou a viajar com o esposo por diversos lugares do Brasil e do exterior. Na sua residência, havia lembranças de viagem, espalhadas pela casa. Muitos até comentavam que a casa de dona Valdemira parecia um museu.
Com a morte do marido, mais velho dezessete anos em relação a ela, dona Valdemira perdeu a vontade de viajar. Decidiu, então, abrir a sua residência para encontro com amigos e amigas. Raro ela saía de casa para eventos sociais. Preferia organizar, em sua residência, sobretudo nos fins de semana, momentos culturais e artísticos. Devido a sua etiqueta e ao seu gosto pelas artes, recebia críticas dos que não se entrosavam com o seu círculo social. E o que ela caprichava era prender o olfato e o paladar dos amigos e das amigas, com o auxílio de suas três empregadas: Auxiliadora, das Dores e Gracinha, todas as três especialistas em culinária, em adega, em etiqueta.
Numa noite de sexta-feira de setembro de 1986, estavam presentes em sua chácara Vivenda das Flores, o seu psicólogo Pedro Henrique de Castro Gomes Neto e sua esposa Ana Amélia de Araújo Gomes, nutricionista. Era um casal sem filhos e estudiosíssimos, de origem recifense. Naquele momento agradável, no espaçoso terraço bem-iluminado e arejado, em meio ao espetacular gramado, palmeiras e estátuas, o casal e dona Valdemira se inebriavam de vinho, comida e música instrumental ambiente.
No meio da conversa, dona Valdemira se lembrou de uma conversa que teve com um casal de amigos. Ocorrera numa sexta-feira à noite, em início de dezembro de 1975. Doutor Manuel Menezes de Almeida e a sua esposa, dona Alexandrina Siebra Menezes, vieram visitá-la. Segundo ela, a presença do casal lhe era deliciosa e a conversa interessantíssima. Uma vez por mês, o casal gostava de presenteá-la com o ritualístico passeio à residência dela e lhe traziam vinhos finos. Em todas as visitas, ele lhe telefonava dois dias antes, marcando o dia e a hora do encontro. Aquilo era providencial, sobretudo para as funcionárias da casa, as quais se esforçavam para deixá-los saciados de guloseimas e bebidas.
Na noite em que o casal veio, marcada por ser a última antes da sua morte, num certo momento, doutor Manuel Menezes levantou uma questão bastante interessante:
- Valdemira, sexo por sexo é fuga. Mas sexo com consciência é amor.
Dona Valdemira acatou a profundeza das palavras do psicólogo Manuel Menezes. Por isso que ela gostava de acolhê-lo em sua casa. Ela sabia que aquele seu psicólogo gostava de puxar assunto para ouvir os outros (era ele um ótimo e atento ouvinte),
Entretanto, na noite de sexta-feira de setembro de 1986, após dona Valdemira apresentar-lhe o assunto de sexo, a partir da declaração do finado psicólogo, doutor Pedro Henrique se lembrou de um fato que se passara consigo, no mês de maio daquele mesmo ano, numa manhã de sábado, quando se dirigia a Barbalha, de ônibus. Ele não iria, naquele dia, dar plantão no hospital barbalhense. Havia decidido passear no centro da cidade, para conversar com amigos.
Dentro do ônibus, iniciou o psicólogo Pedro Henrique, eu ia sentado ao lado da janela aberta, a receber o vento fresco. Lia numa revista católica o artigo de um psicólogo, que escrevia a respeito da orientação sexual na adolescência. Segundo afirmava o autor do texto, as formas de relacionamento entre adolescentes era uma das grandes preocupações da sociedade. No entanto, causava-lhe estranheza observar o descaso e o desrespeito com que o assunto sexo era tratado por diversos especialistas.
Como estava preso ao assunto, não se importou com o passageiro que se sentara do seu lado. Mas se sentiu incomodado com o rapaz a querer saber o que ele lia. Sem lhe pedir licença, o rapaz pôs o dedo sobre a foto do texto e lhe mostrou a sua opinião: “Que coisa horrível, senhor. Como esta aí, são muitas tendo filho e sem nenhuma responsabilidade. Quem planta vento colhe tempestade”.
Ainda se sentindo incomodado, sorriu para ele, ou melhor, pelo provérbio no final de sua fala. Procurou, então, não lhe comentar nada e se deixou navegar os olhos para fora do coletivo. Mas o rapaz insistiu, apontando-lhe o dedo indicador pela janela: "Está vendo aqueles dois se beijando ali? Logo logo ela vai estar grávida e sem ter preparo para ser mãe".
Vendo que o rapaz queria conversa, fechei a revista. Busquei-lhe mostrar que, a cada dia, eram terríveis as consequências da vida sexual antes e fora do casamento: pais solteiros, filhos abandonados, órfãos de pais vivos, além de abortos, adultérios, destruição familiar, doenças venéreas, AIDS etc.
Enquanto eu lhe falava, observei dois passageiros, sentados nas duas cadeiras da fila ao lado, prestando atenção à nossa conversa. Deixei-os me ouvirem. E continuei a explanar para o rapaz que nunca, como em nossos dias, tão grande é o pecado da luxúria. Ele se alastra pelos meios de comunicação… Mas o rapaz me cortou a palavra: "E estamos sendo invadidos por um mar de lama, trazendo imoralidade para dentro das casas, sem respeitar nem mesmo as crianças e os velhos".
Antes de eu concordar com ele, a mulher idosa da cadeira da frente, virando-se para trás, pediu-nos licença. Apresentando-se como católica, perguntou-nos se nós éramos evangélicos. E não nos deixou responder, pois nos emitiu seu pensar: “Sexo é lindo, mas quando ele sai do plano de Deus, se dá um verdadeiro desastre: se explode como uma bomba atômica”.
Tanto eu como o rapaz não esperávamos ouvir aquilo. Olhamo-nos um para o outro. Tivemos de nos parar de olhar quando o senhor de boné, camisa rubro-negra completou: “Me desculpe intrometer na conversa de vocês. Mas essa tal de camisinha acabou foi levando mais a fazer sexo sem rédea. Pois eu acho que é uma grande mentira se dizer que camisinha é segura. Eu mesmo tive um caso lá em casa: a minha terceira filha se engravidou com ela, e eu já ouvi muita gente falar essa mesma coisa. Eu só digo uma coisa, e num tenho medo de errar: essa conversa que se diz de liberdade pra sexo já se tornou safadeza e só serve pra aumentar a prostituição. E tem mais, depois que inventaram esse negócio de homem com homem e mulher com mulher… Que Deus tenha piedade do nosso mundo”.
Eu percebi que havia pairado sopro de silêncio dentro do coletivo. Observei que estávamos diante de dois motéis, do lado esquerdo de quem vai a Barbalha. Fiquei a meditar: como a exploração comercial do sexo atinge níveis assustadores, colocando o ser humano, especialmente a mulher, no mais baixo nível de dignidade. Aproximaram-me sutis indagações: será que Deus iria sempre ficar indiferente a essa luxúria? Será que a própria natureza humana iria deixar de reagir contra tanta bestialidade que hoje se pratica nas tevês e nos filmes? Será que essas iniciativas assistenciais conseguirão baixar o alto índice de gravidez precoce? Ou, ao contrário, acabariam incentivando ainda mais a prática sexual entre adolescentes?...
Tive de voltar à realidade, ante a intervenção do rapaz do meu lado: “Eu acho que o senhor sabe, sendo mais velho que eu: fornicação é sexo fora do casamento. E é um pecado sem controle”.
Por aquilo eu não esperava ouvir. Perguntei-lhe se ele tinha certeza do que me dissera. Ao que ele, rápido, me respondeu, como se fosse um adulto com suas convicções formadas: “A satisfação do sexo, senhor, não está presa ao corpo. Deve estar atrelada ao coração, ao espírito e à mente. Sem amor e compromisso, o sexo torna-se vazio, perigoso e banal.”. E o mesmo rapaz terminou de me expor seu ponto de vista já em pé, aprontando-se para descer na entrada de Barbalha. Despediu-se de mim, sem me dizer quem era.
Dona Valdemira, após ouvir as palavras do seu psicólogo, proferiu a sua opinião: "Quantas pessoas, doutor Pedro Henrique, destruíram-se e se destroem porque foram insanas com os próprios corpos. O desrespeito ao corpo, seja pela impureza, ou por vícios e imprudências, compromete a integridade e a dignidade da pessoa, que é, na verdade, o templo de Deus".
A conversa dos três foi impossibilitada de continuar devido às funcionárias de dona Valdemira os convidarem para a hora do jantar. Lá do jardim, ouviu-se o relógio de parede, dentro da luxuosa residência Vivenda das Flores, bater dez pancadas noturnas.
JN. Dantas de Sousa, Eurides.