Enquanto o bem-sucedido crediarista, Olavo
Mendonça, aguardava o mecânico novato consertar seu automóvel, ele avistou
aquela figura esquálida atravessando devagar a rua. Teve vontade de perguntar a
Abraão, o dono da oficina, quem era aquele maluco. Mas desviou o olhar e entrou
a meditar no que lhe alertava a sua esposa. Para ela, Abraão lhe agradava com
falsos elogios a fim de lhe dar a facada no seu bolso. Aliás, vez por outra,
ela lhe dizia ser Abraão um sujeito desonesto. No entender dela, o dono da
oficina era um protestante que se gabava de nunca ter passado a perna em seus
clientes.
Mas Olavo trocou a meditação para poder
se precaver daquele sujeito esquálido, magro, sujo, encostado à porta da
oficina. E se atentou para a fala de Abraão, mexendo no motor do fiat uno: “Esse
tipo de gente, Seu Olavo, não quer mais trabalhar. Começa e nem chega aos três
meses de experiência”. Apontando com a chave de fenda para a porta da rua,
Abraão alertou Olavo, de voz mais alta: “Taí um, nas costas do senhor.
Tião-imbiribeira. Vou dar um conselho pro senhor: deixe ele de lado. Não dê
esmola não”.
Ao se virar para trás o comerciante,
Tião-imbiribeira se achava em pé, de olhar tímido. Sua primeira reação foi
observá-lo: cabelos emaranhados, olhos vermelhos, só couro e osso, e a roupa
suja, amarrotada. Portava na mão o pau roliço, tipo cassetete. Enquanto respirava,
forçava para expulsar o ar de dentro dos pulmões. E, mais uma vez, lhe alertou Abraão,
deitado embaixo do fiat uno: “Não dê trela pra ele não, Seu Olavo".
Em silêncio, Tião-imbiribeira se
encostou a uma das colunas de madeira que segurava o telhado da oficina. Logo
depois, foi buscar o banquinho, para se sentar encostado à coluna grossa.
Demorou os olhos nos sapatos e na roupa de Olavo. De súbito, estirando a mão,
pediu-lhe esmola. Mas foi repreendido por Abraão, saindo debaixo do carro:
"Tião, ele num tem não. Vá andando, ou fique quieto aí”.
Tião-imbiribeira não saiu do lugar.
Olhou para Olavo de cima a baixo e, depois, parou os olhos no celular em sua mão.
Sorriu para o freguês e balançou a cabeça, como se reprovasse as palavras de
Abraão. Mas outra vez, o dono da oficina, coçando as costas com a chave de
fenda, antecipou a intenção do mendigo: "Esse aí não quer trabalhar.
Quer vida boa, pedindo esmola".
Mais uma vez Olavo voltou os olhos para
Tião-imbiribeira, que riscava algo na areia, com o dedo indicador. E Abraão continuou: “Seu
Olavo, eu dou um bruto danado: me levanto na cantiga do galo. Antes de sair de
casa, deixo pão e café pra mulher e a meninada. Aí, pego meu chevette velho pra
vir trabalhar. Fosse outro, tinha entrado na vida boa desse aí”.
Vendo Tião não dar o troco para Abraão,
o mecânico novato, parando de trabalhar no automóvel de Olavo, mexeu com o
indigente: “Ô Tião, me diga: você não pegou de vera no pesado? Só vive na
boemia tempo todo?”. Também Olavo desejou perguntar a Tião-imbiribeira sobre sua
vida. Mas, ao mudar de ideia, retirou do bolso a carteira de cigarros e
ofereceu um a ele. Os olhos do mendigo foram mais ligeiros do que seus dedos.
Até se exaltou numa exclamação: “Cigarro de rico”.
Sem se importar com as advertências
anteriores de Abraão, o crediarista esperou Tião-imbiribeira se levantar para
receber três cigarros. Ainda acendeu um para ele. Para completar sua
desobediência, ficou a escutar Tião-imbiribeira, sentado no banquinho, de pernas
cruzadas: “Não é de hoje, doutor, que ando a pedir esmola. É muita humilhação.
Peguei no pesado, sem garantia de nada. Vivia com mão na frente e outra atrás.
Aí pense: só tomando dos outros”.
- E por que você se
meteu nisso, cara? - intrometeu-se o mecânico novato. - Nunca pensou em Deus
não?
- Pensei. respondeu-lhe
Tião-imbiribeira, olhando para Olavo. Calou-se para tragar o cigarro. Depois de
jogar fumaça para o céu, continuou, batendo no peito: “Doutor, apanhei feito
cachorro. Emprego que peguei, ficava só bagaço de tanto moído. Quem quer sujeito
magro e parecendo bicho. Vou confessar pro doutor: comecei tomar dos outros por
revolta”.
- Esse papo, Tião, está
manjado. - discordou dele o mecânico novato, ao se levantar num pulo. - Todo
mundo que pega no alheio fala a mesma coisa. Tião, Deus quer a gente no
trabalho. Está na Bíblia, né Seu Abraão?
Consertando ainda o
fiat uno, Abraão, sem levantar o rosto, gritou eufórico: “Muito bem, meu irmão. Aleluia!”. Já Tião-imbiribeira, buscou dar a Olavo mais explicações: “Doutor: criatura
que nem eu só vê confusão, desgosto. Desde pequeno, em casa, era briga. Meu pai
deixou nós pequenos. Meu irmão mais velho morreu de tiro. Minha irmã fugiu de
casa. Um homem que vivia com mãe, tornou minha irmã mulher. Tanta raiva tive dele
que matei ele de peixeira. Aí mãe, com raiva, me jogou de casa pra fora, nos meus
doze anos”.
Ao ouvir isso, o
novato arregalou os olhos para Tião-imbiribeira. Mas, no olhar sério de Abraão,
voltou a trabalhar. E Tião-imbiribeira continuou: "Aí, doutor, fui preso nos
menores. Mas fugi de lá e me soltei no mundo. Aprendi a tomar dos outros.
Aprendi que as coisas boas são também pros que não têm”.
- Você devia ter se
ajeitado. - intrometeu-se mais uma vez o novato, apontando com a chave de roda
para Tião-imbiribeira. - Por que não foi dar o duro, como eu aqui todo suado? Se
entregue a Jesus, Tião.
Tião-imbiribeira não
respondeu ao novato, uma vez que apareceu no portão o policial fardado.
Humilde, o mendigo abaixou a cabeça. Mas ficou espiando o revólver na cintura
da autoridade. Só depois que o policial atravessou a rua, Tião-imbiribeira
dirigiu-se a Olavo: “Naquele tempo, doutor, juntei com os do meu tope. Me botaram
apelido de Pitoco, por causa do meu tamanho. Já tive bocado de apelido. Não
nego: peguei em bocado de dinheiro. Nada em mim era honesto. Pensava: por que não
podia eu ter o que os outros podiam ter? Eu tinha que ter. Aí, tomava dos
ricos o dinheiro e o que mais ele tivesse”.
Levantou-se Olavo
para observar de perto o trabalho do novato, sem deixar de ouvir
Tião-imbiribeira a falar em voz alta, gastando o terceiro cigarro: “A gente
fazia assim, doutor: ficava encostado na esquina como quem não queria nada, só
escolhendo a presa. Aí zapt! Depois, só ouvia a gritaria de pega-ladrão, até se
desaparecer do ouvido. Quando os policiais pegavam um, batia no espinhaço,
chega mais se revoltava. Me lembro duma vez ter matado um de farda. Dei dois
tiros só pra ele se ir de vez”.
Olavo se agoniou com
a fria declaração de Tião-imbiribeira. Fez gesto com a cabeça para Abraão, a lhe
mostrar de não gostar ouvir aquilo. Ao vê-lo incomodado, o dono da oficina, saindo
do seu chevette, repreendeu Olavo: “O senhor é teimoso. Pedi pro sinhô não
agradar Tião. Ainda tolero porque já trabalhou aqui. Saiu, voltou. Saiu,
voltou. Me abusei dele. Dizia que ganhava pouco. Mas está vendo? Não devia ter dado
cigarro”.
Para refrescar a
cabeça, Olavo decidiu acender mais um cigarro. Ainda entregou outro ao mendigo,
que o acendeu com o próprio fósforo. Em seguida, afastou-se de Tião-imbiribeira
e escolheu a cadeira de plástico para se sentar. Só que ficou paciente a ouvir
mais o desabafo de Tião-imbiribeira: “Tudo que disse, doutor, é pura verdade.
Hoje, deixei das estripulias. De tanto trabalhar, levei chute na bunda. Pode ter
certeza, doutor: agora tem gente roubando. Os de anel tem mais tino, sabe botar
a mão na loca. Doutor, a planta nasce e cresce torta, por culpa de quem?”. E o
mecânico novato se adiantou: “Eu sei. Eu sei”.
Não gostando da
intromissão do rapaz, Tião-imbiribeira, puxou a tragada, jogou fumaça para o
telhado e se esforçou na voz: “Você é criança, rapaz. A sua vida vai ser igual
a minha”. E se dirigindo a Olavo, ele se explicou: “Trabalhei de mecânico, aqui, doutor. Um tempão. E digo: tem gente de bíblia, mas é tomando o que é dos
outros”.
Voltando para o mecânico
novato, Tião-imbiribeira anunciou: “Você, cara, vai ficar que nem eu. Sua tripa
vai roncar, sem um centavo no bolso. Aí vem o pé na bunda. E tu sem carteira
assinada”. Desconcertado, o mecânico novato procurou palavras: “Mas você nunca
teve filho”.
- Tive sim, uma
filha. Mora mais eu, desde a morte da mulher. Faz as vezes de esposa, ajeita a
casa, faz meu comer. Mas quem mexer nela, eu arranco o fato do desgraçado.
- Pare com essa
valentia, Tião. - gritou para ele, lá no escritório, Abraão. - Viva em paz. Se
entregue a Jesus.
Tião-imbiribeira
entrou no silêncio. Ao vê-lo mansinho, cabeça baixa, Olavo o
chamou. Entregou-lhe trinta reais. Ao presenciar a ação do seu freguês, Abraão aconselhou a Olavo se regrar na caridade, sobretudo com quem é do tipo de
Tião-imbiribeira.
Ainda, Abraão, com
sorriso de ironia, elogiou Olavo, ao ponto de exagerar a grande quantia
depositada na conta bancária do freguês. E não se esqueceu de convidá-lo a se
encontrar com Jesus lá na sua igreja protestante.
JN. Dantas de Sousa, Eurides.