Tornou-se questão de honra para delegado Getúlio, há
pouco chegado à cidade, desvendar o bárbaro crime e prender o assassino. Alguns
populares de Barbalha, começando a se afobar, já o criticavam pelas esquinas,
achando-o igual a outros delegados frouxos, os quais não demoraram no Cariri.
Outros, perdendo a compostura, haviam corrido até a porta da delegacia,
reclamando-lhe autoridade. Um locutor da única emissora de rádio da cidade,
cutucando com vara curta sobre crimes de antes, sumidos no esgoto da
impunidade, exigia-lhe resolução urgentíssima da tragédia. Foi por isso que delegado Getúlio encheu o peito de coragem e partiu, acompanhado de dois soldados, na
direção do engenho do Prisco Santana, a fim de prender o tal criminoso.
Mas, durante o trajeto, não havia sequer uma placa
apontada para o engenho do Prisco Santana. E o pior se deu quando surgiu,
diante da camioneta, a bifurcação. Diante daquela forquilha de estrada, tanto
delegado Getúlio como os dois policiais se impacientaram. Sem saírem de dentro
da camioneta, por causa do sol forte, decidiram não retornar para a cidade de
mãos abanando. Resolveram, portanto, aguardar por alguém, a fim de tirar
informação.
Dali a pouco, da estrada à esquerda, um menino,
trepado no jumento, vinha se aproximando deles. Trazia água em latas de
querosene. O animal, no sol de rachar, arrastava-se na erma estrada.
- Ei, moleque, gritou o delegado, ainda dentro da
camioneta. - Qual dessas estradas é que vai dar no engenho do Prisco Santana?
O meninote, com medo das autoridades, estirou o dedo
para a da direita e enfiou os pés por debaixo do jumento, deixando para trás
rastros de água no barro duro. O delegado e os dois policiais levantaram
poeira. Lá mais adiante, desceram da camioneta, empurrando a cancela do
engenho.
Nem bem se achegaram ao casarão, Prisco Santana,
sentindo cheiro de polícia, já se encontrava em pé, segurando-se na amurada do
alpendre. Nem se mexeu ao ouvir o delegado, de voz alterada, no meio do
terreiro, avisar a ele estar à procura de João
Caldeirão.
- Se achegue, delegado Getúlio. Se abanquem.
- Estou com pressa, Prisco Santana.
Pequena multidão ajuntava-se ao lado do casarão.
Pelos olhares desconfiados, dava-se para perceber que sabiam do acontecido da
tarde do dia anterior e, até mesmo, do destino do perverso.
- O homem se escafedeu, delegado.
- Ninguém viu pra onde, Prisco Santana?
- Aqui, ninguém, delegado.
Delegado Getúlio coçou a cabeça, a barriga. Não
acreditava na afirmação de Prisco Santana. Tinha certeza de que o tal criminoso
se encontrava metido em algum buraco dali. Afinal, o dono do engenho gozava de
fama de acoitar quem lhe batesse à porta. Comentavam que o velho, com intuito
de adquirir mão-de-obra e gente para a segurança, dava apoio à cabra fora da
lei. O velho era poderoso, astuto: mandava e desmandava ao sentir delegado
frouxo. Por isso, seus botões o alertavam de que, para arrancar algo daquela
botija, ele, delegado Getúlio, teria de suar. Até baixou a cabeça, para
imaginar o que diria àquele homem experimentado. Por fim, soltou a voz: “Vou
apanhar o cabra, Prisco Santana, dê no que der”.
Acostumado com tais rompantes, Prisco Santana, em gesto
de desprezo, voltou para a rede, pondo fim à conversa: “Mas cuidado, delegado,
para não atolar demais a mão na cumbuca”.
Saíram dali delegado Getúlio e os dois policiais,
bufando de raiva. Bateram com força a cancela. Mais adiante, alcançaram a
camioneta. Partiram de volta à delegacia, já com sol começando a desaparecer
por detrás da Chapada do Araripe.
***
A noite caminhava em lua nova sobre Barbalha. No
interior da delegacia, delegado Getúlio observava em silêncio, pela janela, as
lâmpadas amareladas nos postes da praça da desativada estação de trem. Dava-se
para ver o último ônibus, à espera de passageiros para Juazeiro do Norte.
Motorista e cobrador, sentados no banco da praça, eram as únicas pessoas
naquele local desolado. A rua, que descia para os lados da saída da cidade, sem
ninguém, a não ser dois cachorros que perambulavam pela praça.
Enquanto o delegado se enleava nos fios da
investigação, sentado com as pernas sobre o birô, penetrou na sala um dos
policiais, para lhe anunciar a chegada dum senhor meio escuro, de chapéu de
palha, o qual lhe desejava falar algo. Segundo o policial, o desconhecido precisava
retirar uma espinha atravessada em sua garganta. Mesmo franzindo as
sobrancelhas, delegado Getúlio ordenou recebê-lo.
- Sou Toinho, iniciou ele, sentado diante do
delegado. De cabeça baixa, rodava o seu chapéu de palha, entre os dedos. E
completou a sua apresentação: - Trabalho no engenho do Seu Prisco Santana.
Delegado Getúlio esticou o pescoço, ao se interessar
pelo sujeito, anunciando-lhe ser trabalhador de Prisco Santana. Era senhor
magro, de barba por fazer e aparentava ter uns trinta anos. Nervoso, pediu
desculpas ao delegado por ter vindo sem ser chamado. Enquanto falava lento,
movia os olhos pela sala, como se houvesse alguém escondido no recinto,
farejando-lhe os passos. Mas, diante das palavras de confiança do delegado,
acalmou-se.
Na monotonia da noite, Toinho animou delegado Getúlio.
Algo lhe anunciava que uma boa nova se aproximava a fim de elucidar o crime,
além de desmascarar o astuto dono do engenho.
Naquele instante precioso, Toinho ainda a rodar o
chapéu entre os dedos, quebrou a castanha e entregou ao delegado a confissão: João-caldeirão tinha lhe
pedido para ficarem trabalhando, eles dois, na hora em que trabalhadores do engenho
estivessem no almoço e no descanso deles após a comida. Pois foi aí que
ele assistiu, com seus dois olhos, a desgraça infeliz. A
loucura se deu foi por causa que a mulher legítima de João-caldeirão… Todo
mundo de lá do engenho sabia que ela botava chifre em João-caldeirão com o amaldiçoado Zeca-coité.
- Avie logo com isso, gritou o delegado, dando um
murro no birô. - E diga a coisa direta, sem arrodeio.
Diante do nervosismo do delegado, Toinho tremeu-se,
que até derrubou o chapéu no chão. No instante, como se arrependesse da ação,
delegado Getúlio levantou-se de seu lugar para apanhar o chapéu. Ao
entregar-lhe, buscou palavras amenas, fazendo-lhe ver que tudo o que se
passasse no recinto ficaria entre paredes.
Assim, Toinho reanimou-se para explicar que João-caldeirão, sofrendo da dor de chifre, fervia-se de raiva devido à malvadeza da sua mulher. E foi se alimentando, se alimentando de ciumada. O satanás lhe enchera de papa salgada bem "devagarzim". Aí, de repente, mandado pelo demônio apareceu o filho de Zeca-coité onde os dois trabalhavam. E João-caldeirão, com o diabo nos couros, não contou até dez: agarrou o menino e jogou o "coitadim", dos pés à cabeça, dentro do tachão de mel quente lá do engenho, que nem deu pro "bichim" dá, pelo menos, um pio.
- Desgraçado! - e delegado Getúlio deu outro murro
no birô. Mas Toinho nem se assustou. Somente ficou espiando a autoridade
ajuntando papéis rapidamente. De repente, o delegado lhe botou no canto da
parede: “Me diga, meu amigo, me diga já: onde é que se encontra agora o
criminoso?”.
Toinho, de olhos na madeira da mesa, rodando o
chapéu entre os dedos, declarou-lhe ter visto o herege indo de jipe para Exu,
no Pernambuco. O patrão havia mandado dois homens da sua confiança escondê-lo
na cidade pernambucana. Saíram logo o dia quebrando barra, pela rodagem de
areia. Foi a pedido da mulher do Prisco Santana, a qual considerava João-caldeirão
um seu parente. Na verdade, João-caldeirão era um filho de moita. Foi Doutor Joaquim,
filho mais velho de Seu Prisco e Dona Lulu, que fez o mal em Maria da Conceição,
antiga empregada do casarão, e tiveram João-caldeirão.
- Basta! Basta! - bradou delegado Getúlio,
levantando-se apressado. Ficou andando dum lado a outro da sala, repetindo: “Eu
sabia, eu sabia, eu sabia…”. Voltando-se para Toinho, sentado de cabeça baixa,
ainda a rodar o chapéu entre os dedos, determinou-lhe: “Agora, amigo, por
hoje basta. Vá, vá. Depois a gente se vê”.
Delegado Getúlio chamou um dos policiais.
Ordenou-lhe que levasse Toinho até a porta, com prudência, observando, antes da
saída dele, o movimento da rua. E deu ordem para Toinho ficasse de boca calada.
- Num há de quê, delegado Getúlio. Num há de quê.
Toinho saiu da sala do delegado, fazendo-lhe mesuras
com o corpo, até bater à porta. Ficou delegado Getúlio a refletir sobre a
fatídica declaração do empregado de Prisco Santana. Bem sabia ele que havia
ligação entre o criminoso e o pessoal do engenho. Lembrou-se dos olhares
daquele povinho em volta do alpendre. Das palavras de Prisco Santana,
advertindo-o de que não atolasse demais a mão na cumbuca. Também dos conselhos
do poderoso dono de engenho, quando da sua chegada a Barbalha. Prisco Santana,
em visita inesperada à casa do delegado, chamara-lhe a atenção, de voz mansa,
gestos educados: o delegado novo na cidade fechasse os olhos diante de algumas
atribulaçõezinhas.
- Desgraçado! - resmungou o delegado. - Irei até o fundo da cumbuca.
Não deu nem tempo do delegado terminar de arrumar o birô para ir jantar num restaurante da Avenida Leão Sampaio: dois homens entraram porta adentro, sem se importar com o alerta dos dois policiais, aos berros, mandando-os parar. De olhos esbugalhados, ofegantes, os dois traziam para o delegado Getúlio a notícia de que um homem fora assassinado próximo à Matriz de Santo Antônio. Na semiescuridão, ainda chegaram a ver o opala de Prisco Santana, a toda velocidade, em busca da pista de saída da cidade. Eles dois se prestaram para socorrer o todo-ensanguentado, mas o coitado, antes de ir para outro lado, pediu para avisarem na-toda ao delegado Getúlio.
- Ainda está lá, seu delegado. Tesinho no chão.
- Está lá, seu delegado, durinho.
Ao ouvir a agonia dos dois homens, delegado Getúlio
empalideceu. Deixou-se cair na cadeira, ficando derreado ao birô, com as mãos à
cabeça. De olhos fixos na madeira, procurava pôr em ordem os pensamentos.
Lembrou-se da mulher, dos filhos, dos parentes lá na Zona Norte do Estado. Lembrou-se
do seu ingresso na polícia, em Fortaleza, quase vinte anos atrás. Da sua
nomeação para Barbalha, da sua chegada há quatro meses, dos avisos que ouvira
na chegada à cidade, por parte de alguns cidadãos e dos dois policiais, sobre
arrogância e prepotência dos mandões do lugar.
Havia chegado a sua vez, tendo dois caminhos a
escolher: enfrentar Prisco Santana, ou desistir, igual ao Tenório, colega de
corporação. E foi a partir disso que delegado Getúlio, batendo com força as
duas mãos no birô, diante dos dois policiais e dos dois homens à espera de
alguma palavra dele, tomou a decisão.
Antes, ele despediu com educação os dois homens, prometendo-lhes que iria resolver o caso. Voltou a sentar-se na cadeira e passou a colocar, na pasta preta, o que lhe pertencia: o retrato dele e da esposa, ao lado dos dois filhos; alguns papéis, retirados da gaveta de cima. Por fim, em pé, diante dos dois policiais, apresentou-lhes a decisão: “Fiquem aqui que irei agir como deve ser”.
Antes de o dia clarear de todo, com sol se derramando fraquinho pelo asfalto, delegado Getúlio viajou, no seu próprio carro, a caminho da capital cearense. Infelizmente, uma viagem sem volta.
JN. Dantas de Sousa, Eurides.