Há duas semanas, a cidadezinha, de gente simples e pacata, permanecia agitada, e os moradores atordoados. Os mais velhos comentavam que aquele fato inusitado era aviso de Deus, por causa dos pecados da população. Já os mais novos debochavam dos anciãos, referindo-se que eles gostavam de superstições, até de mentiras, a fim de mostrarem autoridade. O converseiro dos moradores iam até no chegar da meia-noite, quando o silêncio dominava a cidadezinha, e o sono as casas. Assim, as poucas ruas ficavam totalmente desertas, porém só se podia ouvir o cricrilar, o coaxar, o latir e o cocoricar.
O tal fato estranho havia mesmo dominado a imaginação do povo. Mas ninguém conseguia descobrir o porquê do sumiço dos gatos. Corria-se um boato de que estavam matando os gatos para que fossem afastados os maus espíritos. Pouco antes dessa tragédia, já houvera matança de corujas, pela mesma razão dos gatos. Pois foi nesse clima de sossego desassossegado que, numa sexta-feira treze de outubro, ocorreu o fato mais constrangedor. Segundo a opinião generalizada daquela cidadezinha, o chefe dos demônios aparecera de modo mais poderoso.
Achava-se na janela do seu quarto, no primeiro andar da casa, Antonieta Lucena, sem sono, devido ao roncar do marido. Entre tristeza e agonia, a mulher se atentou para o barulho de carro se aproximando. De repente, em meio à fraca iluminação dos postes elétricos, ela avistou um carro só com um farol aceso, vindo pela única entrada do lugarejo. Até que o fusca escuro desligou o motor diante da mercearia do esposo. Para melhor situar o leitor, o casal morava no andar de cima, e a mercearia ficava no térreo. Era a melhor mercearia da cidadezinha. Já nem mais a chamavam de bodega.
Antonieta espiou descer do fusca um homem vestido de paletó preto e boina preta. Para surpresa dela, reconheceu ser o doutor Morais. Naquela madrugada, Antonieta Lucena pensou logo o que havia acontecido para o doutor madrugar na cidade. O médico atendia de segunda à quarta-feira e só chegava já com o dia claro. Antonieta fechou a janela e a cortina. Ficou a espiar pela brecha da cortina, doutor Morais descer do carro. A mulher ouviu o som do chaveiro do doutor batendo à porta da mercearia. Ela contou quatro pancadas, que não conseguiram acordar o marido.
Pensou de
imediato Antonieta se deveria atender ao doutor, ou não. Mas, levada pelo
impulso de curiosidade, desceu as escadas, sem ao menos trocar a roupa de
dormir. Resolveu ir, naquela hora da madrugada, porque imaginava que o doutor iria comprar algum remédio comum, desses que se vendem fora da
farmácia. Qual foi sua admiração, que ela até pôs a mão na boca, para não
acordar o marido, ainda roncando lá em cima, quando o médico lhe pediu, com voz
forte, porém baixa: “Antonieta, minha querida, me traga, por favor, uma garrafa
de vinho tinto seco. Aquela que eu sempre gosto de saboreá-la”.
A mulher começou a se tremer. Para Antonieta, era a primeira vez que doutor Morais agia de forma estranha, de fala arfante. Logo, ela rogou ao doutor para que o médico deixasse seu pedido para quando o dia clareasse. E que ela mesma lhe prepararia o tira-gosto. No entanto, o doutor, de voz mais baixa, insistiu tanto que Antonieta se deu por vencida.
Tirou a garrafa da prateleira. Pôs a garrafa e o copo em cima do galpão. Doutor Morais começou a beber. Botou-se para conversar baixinho. Chegou a pedir o seu tira-gosto favorito. Antonieta, mesmo chateada, preparou-lhe o tira-gosto de queijo de coalho com azeitona, azeite de oliva e salpicado de orégano. De instante a instante, a mulher, disfarçadamente, olhava lá para cima, temendo o marido acordar-se. Doutor Morais providenciara fechar as duas bandas da porta da mercearia, para que ninguém os atrapalhasse. Daí aconteceu Antonieta terminar de aceitar um só copo de vinho. Em seguida, outro. Depois de um tempinho, doutor Morais lhe pediu destampar a segunda garrafa. Aconteceu o inesperado: Antonieta caiu nos braços do doutor Morais, beijando-lhe com efusão. Doutor Morais lhe falou ao ouvido: "Quanto tempo, quanto tempo... Eu pensava neste bem-aventurado instante. E o Deus do Amor nos presenteou".
- Deus mesmo não. - alteou a voz Antonieta. E completou: - Foi o demônio. Mas eu me ardia pelo senhor.
Entrelaçaram-se mais. Abriu-se terceira garrafa. Sorriam baixinho. Gemidos dentro dos ouvidos. E festejaram até o dia dar sinais de raiar. Já se ouviam primeiros burburinhos na cidadezinha, e vozes de gente na rua. Como um
tiro, o marido de Antonieta gritou lá de cima pela mulher. Sentira a sua falta ao lado
na cama. Parecia que o diabo fizera dormir mais que nos outros dias. Apressado,
tirou o pijama e vestiu a roupa mais perto dele. Nem pensou em tomar banho.
Não deu nem tempo de descer. Ouviu, então, o comerciante o roncar de carro diante da sua mercearia. Nem imaginou quem seria. Pela janela do andar de cima, avistou o fusca marrom, saindo à toda pressa, em busca da saída da cidadezinha. Reconheceu logo que era o velho automóvel do doutor Morais. Ficou desnorteado porque o doutor desabara, numa correria. Mas que acontecera para ele vir tão cedo ao lugarejo? Ele que só chegava atrasado ao lugar? E, assim, entremeado de pensamentos, desceu apressado para observar de perto o que havia ocorrido.
Julião Lucena encontrou o mercadinho diferente: sobre o balcão, três garrafas
vazias de vinho tinto seco, dois pratos vazios, dois copos esvaziados. E a
Antonieta?… Logo lhe abalou pensamento duvidoso: a mulher, mais nova que ele
dez anos, sua segunda esposa... Já não se encontrava ali. Gritou com desespero:
“Meu Jesus crucificado!”. Abriu as duas bandas da porta central da mercearia.
Deu de cara com Dona Maroca Santana, solteirona, que lhe anunciou, sem ele ao
menos lhe perguntar nada: “Dona Antonieta se foi com doutor Morais, estrada
afora, Seu Julião. Os dois iam alegres, a sorrir desabalados”.
Julião Lucena desabou a chorar tão alto que se amontoou muita gente da cidadezinha. O povo diante do seu mercantil, em silêncio, a olhar para ele, e todos aflitos. Julião caiu na real: Antonieta não se via ao seu lado. Entretanto, diante da multidão que se formara diante do mercadinho, o infeliz comerciante insistia em Antonieta de volta para ele.
Dali em diante, o dono da mercearia e os anciãos da cidadezinha acreditaram com mais fé que, naquela tarde do dia anterior, ao se escurecer antes do tempo, fora um aviso de Deus, para chamar o povo ao arrependimento de seus pecados. Por isso, retornaram a matança de gatos e corujas, até de cachorros: tudo isso para afastar os demônios da cidadezinha.
JN. Dantas de Sousa, Eurides.