Um aviso no céu (Dantas de Sousa) - conto

O mundo não para de mudar. Comida não é igual à do passado. Ninguém bebe uma bebida com sabor de antigamente. Um objeto, com qualquer pancadinha se quebra. E os costumes?... "Nossa Senhora, Deus tome de conta de nós". - e Araujinho, próximo dos sessenta anos, mostrava-se inconformado com os erros da modernidade. 

Para ele, todo mal do mundo só ocorre devido à perversão dos costumes atuais, muito diferente aos do seu tempo. Assim, Godofredo Araruna de Araújo, o Araujinho, afirmava suas ideias aos amigos e amigas. Destacava-se ele como o verdadeiro paladino dos bons costumes, das virtudes, dos valores e dos bons hábitos. Até se aposentar, trabalhou como professor municipal, no Ensino primário. Antes de ter entrado no quadro de funcionários do município de Juazeiro do Norte, Araujinho tinha possuído uma escola de primeiras letras, onde frequentaram, em maioria, meninas. O seu saber, apesar de pouco, fazia-lhe ser um cidadão instruído e recebedor de elogios. Mas o que todos os seus conhecidos da cidade o admiravam mesmo era aquele seu apego aos ensinamentos da Igreja Católica Apostólica Romana. 

Apesar de ter lido poucos documentos eclesiásticos, de conhecer pouco a História da Igreja, apresentava-se fiel à tradição católica, aos atos litúrgicos e às rezas. Assistia à missa diariamente, se confessava, comungava e rezava o terço todos os dias. Ainda, possuía o hábito de rezar novena de santos pelas casas. Tudo isso para quê?… Era assim que os amigos lhe especulavam. Já as suas íntimas amigas muito o admiravam, diante de todo àquele verdadeiro esforço para ir para o céu.   

- O que eu fiz desde a juventude e continuo ainda hoje fazendo sem canseira, gostava Araujinho de se explicar, sempre com o hábito de bater seu guarda-chuva no chão. - É tudo, tudo, para a minha salvação e dessa multidão de pecador seguindo para o fogo eterno.

O tal fogo eterno, para ele, era o do inferno. E Araujinho sabia, ao seu modo, descrever bem esse local de sofrimento eterno. Identificava-o como a morada eterna dos que viravam por completo as costas para Deus. Segundo o rapaz velho, o inferno começou a se encher bem mais no início do século XX. “Sabem por quê? Sabem por quê?” - indagava Araujinho a quem lhe desejava saber do motivo dessa inchação do inferno. De dedo indicador em riste e de rosto fechado e sério, procurava advertir todos os conhecidos deste modo: “Tudo por causa dos pecados espalhados pelo comunismo no mundo”. 

E foi devido a essa advertência que dona do Céu, ou Maria Margarida Evangelista dos Anjos, solteirona, procurou ser amiga íntima de Araujinho. Até que, finalmente, ela conseguiu poder adentrar à residência de Araujinho. Assim, na tarde da primeira segunda-feira de setembro, foi ela a escolhida a visitar o rapaz velho. Naquele dia especial, comemorava-se a passagem do aniversário de sessenta anos de Godofredo Araruna de Araújo, o Araujinho. 

A casa de Araujinho se situava num agradável sítio. Ficava ela ladeada por três mangueiras, dois pés de seriguela, três de mamão, dois de abacate, dois de limão. Na frente da casa, o juazeiro de sombra farta. Havia ainda a pequena horta, de onde Rita, a sua cozinheira e “dona da casa”, retirava alface, tomate, coentro, cebolinha, pimentão e pimentinha verde, para as refeições dos dois. Habitavam na casa o gato Neguim e o cachorro Barão . Dentro de duas gaiolas, quase se encostando ao telhado interno da sala de visitas, para ficarem longe das garras de Neguim, os bons cantadores: canário, golinha, galo de campina e sabiá. Por falar nessa sala da frente, após o alpendre, viam-se quadros de santos e o dos pais dele, já falecidos. Havia ainda a enfeitada mesa, de toalha de renda branca, onde se achava o oratório de madeira, o qual era uma verdadeira obra de arte barroca. 

Depois de três meses de visitas a Araujinho, sempre nas segundas-feiras à tarde, dona do Céu passou a ser a visitante oficial da casa. Assim, conseguiram chegar a vinte e cinco anos de amizade. No entanto, nunca desejou morar com ele, apesar de Araujinho convidá-la, sobretudo nos seus últimos dias de vida. Próximo de morrer, sem ainda sinal de caduquice, Araujinho revelou a dona do Céu um segredo. E a mulher, até antes de morrer, gostava de contar o tal segredo. 

Araujinho contou o tal segredo a dona do Céu no dia em que ele festejava os seus oitenta e três anos. Mostrava-se animado e com saúde. Os dois beberam o saboroso café de Rita. Comeram, naquele dia, bolo de puba e sequilho. Rita, uma cozinheira de fogão de barro, de primeira. Como dona do Céu apreciava a culinária da cabocla. Aliás, ali na casa de Araujinho comida saborosa nunca faltou na mesa.

- Eu vi direitinho o caixão no céu, Margarida. Bem ali, ali. - iniciou Araujinho a revelar o segredo, com a cabeça para fora da janela da cozinha, onde acabaram os três de se alimentar. Ele apontava o dedo indicador da mão direita para o lado do oeste. E continuou a narrar: “Foi nessa mesma hora: de quatro para cinco da tarde. O caixão estava espalhado pelo Céu”. 

Sem sair da janela, Araujinho convidou, com insistência, as duas mulheres, para lhes mostrar o local do céu onde ele avistou a visão fenomenal. Indicou, como referência precisa, a copa da mangueira do meio. Segundo ele, ali ocorrera a visão fantástica no tempo de sua mocidade, ainda quando ele atravessava seus  vinte e três anos de vida. Após Araujinho certificar o local onde, no céu, aparecera o caixão, voltaram a sentar-se ainda na mesa da cozinha. Num instante, Godofredo Augusto de Araújo mudou de rosto. As duas mulheres até se espantaram, porque nunca viram Araujinho daquele jeito pálido. 

Araujinho, então, deu prosseguimento a sua história incrível. Para ele, o misterioso fato aconteceu numa primeira sexta-feira, do mês de junho. E explicou-se: mês do Sagrado Coração de Jesus. Na época, seus pais estavam vivos. Os dois ainda descansavam no quarto de dormir, ao lado do seu. Rita, ainda moça, tinha ido ao sítio da família dela, próximo dali. A visão foi de repente. Araujinho havia resolvido abrir a janela da cozinha para espiar o céu, logo após haver posto o café da garrafa térmica na xícara. Que surpresa! Avistou ele o caixão prateado, brilhando no céu sem nuvens e começando a se avermelhar, devido ao final da tarde. 

- Vi com estes meus dois olhos, que Deus me deu. - afirmou Araujinho, ainda apontando para o céu. - Naquele instante, eu cheguei a ver sair, de dentro do caixão, a faixa preta, que se estendia pouco a pouco pelo céu. Meus olhos chegaram a lacrimejar por causa da claridade que fazia. Parado eu estava, parado fiquei. Não tive ânimo nem pra me bulir. Só vi quando começou a ser escrita, na faixa preta, já toda estendida no céu, as letras prateadas. Prestei atenção em cada palavra que ia sendo escrita. Não vi quem escrevia as palavras. Quando a faixa terminou de ser escrita, eu li e reli por duas vezes a frase. Aquela frase nunca mais saiu da minha cabeça. Dizia assim ela: AUMENTE O PANO QUE EU AUMENTO O PÃO.

Interessante foi o que somente, após faltando duas décadas para a chegada do ano dois mil, Araujinho conseguiu decifrar o seu tal enigma divino. Deu-se assim: certo dia, no mês de agosto de 1976, ao se achar o rapaz velho assistindo à televisão, deparou-se com o assassinato de uma mulher pelo seu próprio marido, enciumado por ela andar com a roupa a mostrar pernas e seios. Esse fato alumiou a mente de Araujinho para a exata decifração daquela sua frase no céu.

- Mas me diga, Margarida. - alertou Araujinho à amiga, enquanto colocava a xícara vazia sobre o pires. - Me diga: poucas mulheres de hoje chegam a aumentar o pano? Poucas que são. Preste atenção: a maioria das mulheres de hoje gosta de andar mostrando pernas, peitos e até seus fundos. Por isso está faltando pão na mesa de muita gente. São castigos por causa dos pecados. AUMENTE O PANO QUE EU AUMENTO O PÃO, se eu falasse para o mundo, todos achariam ilusão, alucinação,  loucura.

Até antes de morrer, ainda lúcida, dona do Céu, quando terminava de contar aos conhecidos a história do seu amigo, dizia-lhes que não havia entendido aquela frase do seu amigo Godofredo: AUMENTE O PANO QUE EU AUMENTO O PÃO. Já Rita morreu acreditando.

JN, Dantas de Sousa, Eurides.

Texto literário de Dantas de Sousa - conto

Texto literário de Dantas de Sousa - crônica

Texto literário de Dantas de Sousa - poema

Literatura do Folclore: Conto

Literatura do Folclore: Ditado e Provérbio

Literatura do Folclore: Qual o cúmulo de...