Verdadeira fome (Dantas de Sousa) - conto


Demorou quase uma década para a esposa e a sogra aceitarem que a zoadaria de Luís Rodrigues Ferro, dentro de casa, era somente pretexto para ele pôr fim a sua verdadeira fome. Depois que as duas se acostumaram, elas passaram a se divertir com a situação, como naquele feriado do Dia Internacional do Trabalho. Em sábado de sol claro, antes do almoço, iniciou-se mais uma zoadaria de Luís Ferro, enquanto ele, a mulher e a sogra se achavam sentados na sala de visitas. De voz rouquenha, o dono da casa passou a acusar a esposa de gastar todo o abastecimento mensal da família, comprado no supermercado há doze dias. Para Luís Ferro, a mulher andava nem aí para a subida louca dos preços, como a do arroz. Ele até reclamou, de voz alta, que a esposa deveria aprender a pesquisar os preços, a fim de driblar a carestia. Para mostrar mais autoridade, exigiu da esposa e da sogra racionamento em casa. E voltou-se para a leitura do jornal do dia anterior, trazido da repartição municipal.

Diante do silêncio, mãe e filha se entreolharam surpresas. Mas só durou um risco. O diabo atentou o filho caçula, Rodriguinho. O menino, de repente, surgiu na sala de visitas, segurando a panela de arroz com as duas mãos. De voz chorosa, insistia para a mãe lhe dar o seu de-comer. Diante dessa destemperada situação, Albertina, a esposa, nem se mexeu do lugar, esperando do marido outra carga de reclamação. Afinal, era ele quem botava o dinheiro maior dentro de casa.

- Prestem atenção no que o jornal diz, alertou Luís Ferro, sem tirar o papel do rosto. - Vai subir de novo o arroz. Arre égua! Arre égua! Ô Albertina, bote freio na boca desse menino. 

O menino voltou a agoniar a mãe: “Tou com fome, mãe. Nem chilico tem aqui em casa, pra eu comer”. A avó de Rodriguinho, Dona Mimosa, em pé, no corredor da casa, mandou a filha decidir o caso. Nem poupou crítica ao genro: passou-lhe na cara que, apesar dele ser chefe da garagem do Município, não agia como os chefes anteriores. Precisava, pois, do genro aprender melhorar o salário, sem deixar rastro. A velha levantou a voz, para melhor protestar: “Chega, Luiz, de arroz, arroz, nesta casa. Existe farinha, feijão, milho, macarrão, goma, batata-inglesa, batata-doce, inhame… A gente sabe que no nosso país tem de tudo pra se comer”.

- Tá bom, tá bom, Dona Mimosa. Se deixar sua filha gastadeira empurrar na mesa de tudo de uma vez... Arre égua! Arre égua!

Diante de tanto nome de comida, Rodriguinho caiu sentado no chão, sem soltar a panela com as duas mãos. Virando os olhos para a avó, atiçou:  “Vó, vó, bota moral em pai”. Luís Ferro engoliu corda. Levantou-se da cadeira disposto a botar moral na casa. Depois de tomar a panela do filho, aumentou a voz, já na sala de jantar:  “Arre égua! Arre égua! A crise por causa do alimento, estourando no mundo, os preços subindo pela hora da morte... Mas vocês duas sem enxergar nada”. 

Dona Mimosa rebateu o genro: alertou-lhe que ela e Albertina não eram cegas e assistiam à televisão. Estirou saber ao genro: elas ouviram, pela televisão, que as áreas de plantação de arroz estavam deixando de plantar arroz, para plantarem biodiesel do Lula. Foi aí que Luís Ferro plantou mais confusão: “Arre égua, sogrona. Você só entende merda no que assiste. Quem se viu plantar biodiesel? Só na cabeça de duas burras”. 

Albertina, vermelha e em pé, de dedo indicador estirado para o marido, saiu-se em defesa da mãe: ouviram elas duas uma autoridade do FMI ter dito na televisão aquilo. Inclusive o mesmo homem do FMI tinha mandado um recado pro Lula e pro Bush sobre o biodiesel. 

- Bem dizia meu finado Onofre. - deu o ultimato dona Mimosa. - Leitura muita é sinal da loucura perto. E quem não gosta de ouvir, caia fora. 

Melhor que isso não poderia haver. Para Luís Ferro, a indireta da sogra, se usando do “caia fora”, era a senha. Obediente, dirigiu-se ao quarto de dormir, esforçando-se na voz: “Arre égua! Arre égua! Essas duas quando começam a ferroar, eu vou cair fora”. 

Mãe e filha nem deram bola ao converseiro de Luís Ferro se ajeitando para sair. Albertina bulia no controle da televisão, a procurar canal. Por coincidência, deparou-se com a repórter, numa rua de Fortaleza, diante de homens descarregando caminhões com sacas de arroz. A jornalista alertou ser o arroz o mais novo vilão da mesa.  Arroz apresentava aumento enorme nos últimos doze meses. 

- Entenderam vocês duas o que a mulher terminou de falar? - gritou Luís Ferro, ainda no quarto. - Só tem uma solução: comprar e gastar menos arroz. Ouviram bem?

A filha e a sogra nem ligaram para a barulheira de Luís Ferro. Ficaram a escutar a repórter ainda amedrontando o público sobre a inflação dos alimentos, causadores de tanta crise e violência no estrangeiro. Dona Mimosa não deixou passar em branco: “Mas eu continuo dizendo: isso é culpa do Lula que mandou o povo do Nordeste plantar biodiesel”. 

Luís Ferro não se conteve: saiu do quarto às pressas, sem ajuntar o jornal, espalhado pelo chão. Bateu à porta da rua com tanta força que Rodriguinho, vindo do quintal, quis saber o porquê do pai sair daquele jeito, nervoso. Não teve, porém, resposta. As duas se entreolharam e sorriram. Para elas, o Luís desaguaria toda a raiva lá no bar do Alzir.

Dito e certo. Luís Ferro, segurando a primeira dose de cachaça e a seriguela, desabafou-se no bar: “As mulheres lá de casa são umas peste, Alzir. Arre égua! Arre égua! Botaram na cabeça que a subida do arroz foi porque Lula mandou plantar biodiesel. Eita duas burras eu carrego. Avalie só”.

No seu desabafo, não deixava Alzir os fregueses se meterem na lamentação de Luís Ferro. Só depois da terceira dose, mais calmo, aprumou as palavras: explicou aos três que o aumento do arroz e dos alimentos no mundo não devia ser visto como coisa perigosa, pra tanta alarmação. Era mais safadeza da oposição, a querer derrubar Lula. E concluiu que havia carestia de arroz no mundo porque tinha mais pobre comendo. E Lula prometeu três refeições durante a eleição.

- E como eu não tenho nem vejo essas três. - protestou o freguês de boné preto, camisa do Flamengo. Lá vem tu com gaitice dos bestas de Lula.

Fazendo-se de brabo, Alzir buscou logo acalmar os nervos do carroceiro Joca. Pediu-lhe mais atenção no modo de falar. Alertou-lhe que deveria escutar mais quem estava de chegada. Assim, apoiado por Alzir, Luís Ferro se soltou: ele era Lula até debaixo d’água. E saiu a nadar em palavras: a especulação era o chefe da crise do arroz, mas Lula prometeu pegar arroz na Conab para distribuir com todo o povo pobre do Brasil. E, se preciso fosse, ele ia tomar dos supermercados, mas o povo não ia passar fome. 

Diante disso, Joca se enraiveceu: “Seu jumento, essa sem-vergonhice ele disse pra tu, um besta? Com banana e bolo se engana os tolos como tu. Bota nessa tua cabeça oca: isso é só babau”. Depois dessa, Luís Ferro partiu pra cima: “Vai tomar no seu peidador, seu corno”.

A coisa mudou: avermelhado, o carroceiro, levantando-se da mesa, atracou-se com Luís Ferro. Precisou Alzir agir depressa. Pulando para fora do balcão, desatracou os dois e exigiu mais respeito quem estava no seu bar. E dentro da calmaria no seu bar, Alzir revelou aos presentes que, desde rapaz, ouvia de como iria chegar a verdadeira fome no mundo. 

Segundo a filosofia de Alzir, a fome verdadeira já havia chegado, no princípio do ano de dois mil. Antes, de mil a dois mil, a fome, já mocinha, viera de costa, para que o os homens e os bichos não pudessem conhecê-la de frente. Os mais velhos já diziam que ela viria em dois mil e iria tirar o véu que lhe cobria o rosto famélico. Portanto, ela havia chegado, sim: se apresentava assombrando o povo, com o nome de Carestia. Assim, caía por terra a teoria de que a fome era a falta de alimento no estômago das pessoas. Concluiu sua conversa assim: a Carestia, depois que ela tirou seu véu, é a maior responsável pela fome do povo. Ela é formada por três pessoas: o produtor, o atravessador e o comercializador. Esse trio é quem segura o alimento para subir o preço mais.

Após botar pouco de cachaça nos copos, Alzir ainda derramou a última gota do seu saber: a prova do que terminara de falar era porque, nos últimos dias, o preço do arroz mais que dobrou. E quem consumisse seis quilos por mês teria de abaixar para três. Assim, palavra de Alzir era prego batido, ponta virada. 

Entretanto, diante da exposição do dono do bar, Joca o apoiou com uma ressalva. Para ele, Seu Matusalém era mais compreensível do que Alzir com os fregueses. Lá, na bodega dele, se podia comprar quarta de arroz, um dente de alho, cinquenta centavos de margarina, meio pão, meia gilete… O fiado na caderneta podia se estender até no céu. E não deixou o recado cair: “Beber lá na bodega de Seu Matusalém é melhor que aqui. Com cinco real é uma festa, a gente bebe que vira a perna. Seu Matusalém é batata. Lá está cheinho de gente, tempo todo. Mentira de quem diz que a bodega de Seu Matusalém é uma cama de gás”.

Luís Ferro, Joca e mais quatro fregueses gargalharam. Passaram a tirar brincadeiras com Alzir. Mas eles não esperavam pela vingança de Alzir. De lá do balcão, o dono do bar propôs-lhes uma aposta. Desculpando-se de que não era produtor de arroz, nem dono de armazém, nem era caridoso como o seu rival, Alzir ofertou para Luís Ferro e Joca dois litros de cachaça da branca, e explicou: “É uma pra cada um. Depois de eu tirar o selo das garrafas, vocês dois só podem se levantar da mesa só pra mijar. E tem de secar o litro”.

Tanto Luís Ferro quanto Joca, apertando a mão de Alzir, apalavraram a aposta. Dali em diante, enquanto bebiam, diziam se todos fossem como Alzir, não haveria a verdadeira fome. E ajuntou gente no bar, torcendo para quem chegaria primeiro a secar o litro. Entretanto os dois não aguentaram o final da aposta. 

Na madrugada do início do domingo, Bonfim, garçom de Alzir, levou para casa o primeiro que emborcou na mesa: Joca. Em seguida, a vez de Luís Ferro. Cada um deles seguiu dormindo, com pernas e braços estendidos para fora, no carrinho de ferro, chamado pelos fregueses de o táxi dos bebuns de Alzir.

JN. Dantas de Sousa, Eurides

Texto literário de Dantas de Sousa - conto

Texto literário de Dantas de Sousa - crônica

Texto literário de Dantas de Sousa - poema

Literatura do Folclore: Conto

Literatura do Folclore: Ditado e Provérbio

Literatura do Folclore: Qual o cúmulo de...